Um dado muito comum dito em diversas situações relacionadas à pintura é unânime entre os artistas: a importância dos valores tonais. Ou seja, a importância da relação de contraste entre branco e preto (passando por todas as escalas de cinza possíveis entre ambos).
Em breve farei algumas matérias sobre valores, mas o que trago aqui é uma pergunta básica: por que os valores são tão importantes assim? Porque uma pintura pode ter uma combinação de cores não muito agradável, mas se tiver os valores corretos, ela funciona?
Pesquisando sobre esse tema, fui em duas fontes que tenho à mão e ver o que conseguia descobrir, já que ambos discursam bastante sobre o processo da visão: O Universo da Cor (ed. Senac), livro de Israel Pedrosa, autor do famoso Da Cor à Cor Inexistente e em um dos mais famosos estudiosos de cores: Goethe em Doutrina das Cores (ed. Nova Alexandria).
No Universo da Cor, Israel Pedrosa diz:
“O aprendizado do olhar
A partir da formulação de Goethe: “de que vale olhar sem ver?”, difundiu-se a caracterização da diferença entre olhar e ver. Esse conceito, que desde a Antiguidade era patrimônio de artistas e filósofos, passou a integrar o vocabulário das demais pessoas ilustradas”….
…Todo o arsenal de conhecimentos trazido pelas modernas áreas da Física, da Fisiologia e da Psicologia não alterou qualitativamente o ato perceptivo do olhar. Essa qualidade perceptiva que transforma o olhar em ver continua sendo patrimônio dos pintores e de todos aqueles que exercitam continuamente a perscrutação (análise) visual munidos de determinados dados cognitivos que ampliam a eficácia de tal exercício.”
Resumindo aqui o que ele diz, mesmo com os avanços de conhecimento de diversas áreas, a diferença entre o ato de olhar (físico) e o ato de ver (interpretação) ainda é quase que exclusivamente um recurso entre os artistas e apreciadores da arte.
Se você quer ler um pouco mais sobre o tema, veja esta matéria intitulada Aprender a Ver aqui no site.
Vamos agora na Doutrina das Cores de Goethe:
“Luz e Escuridão para o Olho
……Quem passa de um lugar completamente escuro a um outro iluminado pelo sol, fica ofuscado. Quem sai de um lugar pouco iluminado para uma claridade não ofuscante, distingue com mais vivacidade, e melhor, os objetos. Assim, um olho em repouso é mais sensível a fenômenos moderados.
A sensibilidade da retina entre presos, a muito tempo confinados, é tão grande que distinguem objetos na escuridão (certamente um pouco iluminada).
Naquilo que denominamos ver, a retina se encontra simultaneamente em estados diferentes e até opostos. A máxima claridade não ofuscante atua ao lado da escuridão total. Percebemos ao mesmo tempo todos os graus intermediários do claro-escuro e todas as determinações cromáticas”.
Aqui ele fala da sensibilidade da retina e como ela se adapta. Quando mudamos bruscamente entre claro e escuro (e vice-versa), ela leva um tempo pra se adaptar. Mas quando essa transição de claro/escuro é menor, o efeito é mais moderado.
Aí ele traz mais um conhecimento que parece responder a famosa questão lá de cima: “porque os valores tonais são importantes?”
“Imagens Pretas e Brancas para o Olho
A retina está para objetos particulares claros e escuros, assim como para o claro e escuro em geral. Se luz e escuridão nela provocam disposições completamente diferentes, imagens pretas e brancas, incidindo ao mesmo tempo no olho, produzem, juntas, os mesmos estados que luz e escuridão sucessivamente.”
Ou seja, assim como a retina se adapta aos claros e escuros produzidos pela iluminação em um ambiente, uma imagem que carregue claros e escuros, reproduz o mesmo efeito na retina. Nossa percepção é a mesma.
Voltando ao Israel Pedrosa no Universo da Cor, vem uma informação que parece fechar a equação:
“A visão humana
Nossos olhos abrangem uma área pouco inferior a 180 graus ao redor do nosso corpo. Na parte da frente de nosso olho encontra-se a íris, que funciona como diafragma, limitando os raios luminosos que penetram em seu interior para atingir a retina.
A superfície da retina é composta por duas áreas distintas. A do centro, denominada fóvea retiniana, é formada por cerca de 7 milhões de fibrilas nervosas, denominadas cones, responsáveis pela visão em cores: visão tricromática. Esses cones estão divididos em três grupos. O primeiro é sensível ao vermelho, o segundo ao verde e o terceiro ao azul. Não existem cones específicos para a sensação do amarelo. Essa cor só é percebida pela sensibilização simultânea dos cones vermelhos e verdes.
A parte da retina que circunda a fóvea é constituída por cerca de 100 milhões de bastonetes, sensíveis às imagens em preto e branco.
No centro da retina encontra-se o nervo óptico, responsável pela transmissão ao cérebro das sensações captadas pelos cones e bastonetes.”
Os números são bem expressivos não? Temos aí 7 milhões de cones para observarmos as cores e 100 (!!) milhões de bastonetes para vermos claro e escuro – valores tonais!
Então podemos chegar a conclusão do porquê do valor tonal ser um dos elementos mais importantes na pintura: é porque, fisiologicamente, é assim que nossos olhos percebem o mundo ao nosso redor.
Isso provavelmente tem a ver com nosso processo evolutivo, sobrevivência, etc (não vou tão a fundo assim, ok?).
E isso também está ligado a um processo de sobrevivência: com valores, enxergamos distâncias, bordas, etc. Como seria um mundo sem valores tonais? Veja uma simulação gerada no Photoshop pra ter uma ideia do caos que seria….
Agora sim podemos explicar porque valores tonais tem a importância que tem para nossa observação. Na próxima vez que estiver estudando luz e sombra vai lembrar que esses estudos tem uma importância maior ainda do que pensávamos.
Pra fechar a matéria, vou trazer mais um trecho do Israel Pedrosa:
Quem sabe mais vê mais
No estudo da cor, parodiando ou completando a sentença Quem vê mais sabe mais, podemos afirmar também quem sabe mais vê mais, formando um círculo evolutivo perpétuo: Quem vê mais sabe mais; quem sabe mais vê mais; Quem vê mais sabe mais….. Isso significa que cada nova visão amplia nosso conhecimento; conhecimento que amplia nossa visão que amplia nosso conhecimento…
O ato de ver do pintor, na busca do aprendizado do olhar, ultrapassa o dado puramente sensorial, transformando-o em complexo fenômeno perceptivo coadjuvado por indagações e pelo acervo de conhecimentos, aspirações, sonhos e fantasias do artista. Assim, todo novo conhecimento adquirido amplia a capacidade perceptiva do pintor. O que é válido também para todos os homens que se preocupam com a acuidade visual.
Se curitu esta linha de pensamento, não deixe de ler também a matéria “A arte de ver” o/
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