Já fazem alguns anos que abro minhas aulas de pintura citando o livro ‘Desenhando com o lado direito do cérebro’ da Betty Edwards, entre outros materiais. Esse livro é da década de 70 e por mais que alguns conceitos possam ter evoluído na explicação, o fato é que essa metodologia utilizada por ela tem bons resultados. O que ela ensina é: Aprender a ver.
Esses dias, pulando de um livro pra outro, encontrei parte de um capítulo do livro ‘Criatividade S.A.’ (Ed. Rocco) de Ed Catmull (cofundador da Pixar Animation Studios) junto com a jornalista Amy Wallace, onde fala exatamente sobre isso. No capítulo 10 entitulado ‘Ampliando nossa Visão’ ele abrange alguns mecanismos (7 na verdade) usado pela Pixar para afinar a relação das visões pessoais (indivíduo) com a visão da empresa (coletivo). Vamos ver o que ele descreve sobre isso:
6. APRENDER A VER
“No ano de lançamento de Toy Story introduzimos um programa de dez semanas para ensinar cada novo funcionário a usar nosso software exclusivo. Chamamos o programa de Universidade Pixar e contratei um excelente treinador técnico para dirigi-lo. Naquele ponto, o nome universidade era um pouco equivocado, uma vez que se tratava mais de um seminário de treinamento do que qualquer coisa semelhante a uma instituição de ensino superior. É fácil justificar um programa de treinamento, mas eu tinha outra agenda e, na tentativa de cumpri-la, teríamos bônus surpreendentes.
Embora algumas pessoas na Pixar já soubessem desenhar – e muito bem – em sua maioria, nossos funcionários não eram artistas. Mas havia um princípio importante subjacente ao processo de aprender a desenhar e queríamos que todos o compreendessem. Assim, contratei Elyse Klaidman, que havia dirigido seminários de desenho inspirados pelo livro ‘Desenhando com o lado direito do cérebro’ (Ediouro, 2000), escrito em 1979 por Betty Edwards, para nos ensinar a aumentar nossos poderes de observação. Naquele tempo, ouvia-se muito falar a respeito dos conceitos de pensamento dos hemisférios esquerdo e direito, posteriormente chamado de modo E e modo D. O modo E era verbal/analítico e o modo D era visual/perceptivo. Elyse nos ensino que, enquanto muitas atividades usavam os dois modos, o desenho exigia o desligamento do modo E. Isso significava aprender a suprimir essa parte do seu cérebro que salta para as conclusões e ver uma imagem somente como uma imagem, e não como um objeto.
Pense a respeito do que acontece quando tentamos desenhar um rosto. A maioria desenha o nariz, os olhos, a testa, as orelhas e a boca, mas – a menos que a pessoa tenha aprendido formalmente a desenhar – eles ficam muito fora de proporção e não se parecem com ninguém em particular. Isso porque, para o cérebro, todas as partes do rosto não são criadas iguais. Por exemplo, uma vez que os olhos e a boca – os lugares de comunicação – são mais importantes para nós que a testa, é dada maior ênfase ao seu reconhecimento e, quando os desenhamos, tendemos a fazê-los grandes demais, ao passo que a testa é feita demasiado pequena. Não desenhamos um rosto como ele é: em vez disso, nós o desenhamos como nosso modelos dizem que ele é.
Os modelos de objetos tridimensionais que carregamos na cabeça precisam ser genéricos; devem representar todas as variações dos objetos dados. Por exemplo,nosso modelo mental de um sapato deve abranger tudo, desde um salto agulha até uma bota reforçada; ele não pode ser específico a ponto de excluir esses extremos. A capacidade de generalizar do nosso cérebro é essencial, mas algumas pessoas conseguem passar do genérico para o específico para ver com mais clareza. Para ficar com nosso exemplo de desenhar, algumas pessoas desenham melhor que outras. O que elas fazem que a maioria das pessoas não faz? E se a resposta é que elas deixam de lado seus preconceitos, podemos todos aprender a fazer isso?
Na maior parte dos casos, a resposta é sim.
Os professores de arte usam alguns truques para treinar novos artistas. Por exemplo, colocam um objeto de ponta-cabeça para que cada aluno possa olhá-lo como uma forma pura, e não como uma coisa reconhecível (digamos um sapato). O cérebro não distorce esse objeto de ponta-cabeça porque não impõe automaticamente sobre ele seu modelo de sapato. Outro truque é pedir que os alunos focalizem aspectos negativos – as áreas ao redor de um objeto que não são ele. Por exemplo, ao desenhar uma cadeira, a nova artista pode desenhá-la mal, porque sabe como uma cadeira deve parecer (e essa cadeira na sua mente – seu modelo mental – a impede de reproduzir precisamente o que ela vê à sua frente). Porém, caso ela seja solicitada a desenhar aquilo que não é a cadeira – por exemplo, os espaços em torno da perna da cadeira -, então fica mais fácil aceitar as proporções e a cadeira ficará mais realista. A razão é que embora o cérebro reconheça uma cadeira como tal, ele não atribui nenhum significado à forma dos espaços entre as pernas (e assim não tenta “corrigi-la” para torná-la mais parecida com o modelo mental do artista).
Essa lição pretende ajudar os alunos a ver as formas como elas são – a ignorar a parte do cérebro que quer transformar aquilo que é visto numa noção genérica: um modelo da cadeira. Então, um artista treinado que vê uma cadeira é capaz de captar aquilo que os olhos veem (forma, cor) antes que a função “reconhecedora” lhe diga o que aquilo deve ser.
O mesmo vale para as cores. Quando olhamos para um volume de água, nosso cérebro pensa – e portanto vê – azul. Se formos solicitados a pintar o quadro de um lago, escolheremos a cor azul e ficaremos surpresos pelo fato de ela nao parecer certa na tela. Mas se olharmos para pontos diferentes do mesmo lago através de um furo de alfinete (e com isso separando-o da ideia geral de “lago”), veremos o que realmente está lá: verde, amarelo, preto e lampejos de branco. Não permitiremos a interferência do cérebro e, com isso, veremos sua verdadeira cor.
Quer acrescentar uma observação importante: o fato de os artistas terem aprendido a usar essas formas de ver não significa que não vejam também aquilo que vemos. Eles veem. Apenas veem mais, porque aprenderam como neutralizar a tendência de suas mentes de saltar para conclusões. Eles adicionaram alguns talentos de observação aos seus instrumentos. (Por isso é tão frustrante o fato de as verbas para programas de artes nas escolas terem sido reduzidas. E esses cortes provém da concepção errônea de que as aulas de até servem para aprender a desenhar. Na verdade, elas ensinam a ver.)
Quer ou não você venha a ter um caderno de desenhos ou sonhe tornar-se um animador, espero que entenda que é possível, com prática, ensinar seu cérebro a observar algo claramente, sem permitir a interferência dos seus preconceitos. É um fato da vida, apesar de confuso, que o ao de focalizar um objeto pode torná-lo mais difícil de ver. A meta é aprender a suspender temporariamente os hábitos e impulsos que obscurecem sua visão.
Não introduzi esse tópico para convencê-lo de que qualquer um pode aprender a desenhar. A verdadeira questão é que você pode aprender a deixar preconceitos de lado. Não é que você não tenha propensões, mas há maneiras de aprender a ignorá-las ao considerar um problema. Desenhar a “não cadeira” pode ser um tipo de metáfora para aumentar a capacidade de percepção. Assim como olhar para aquilo que não é a cadeira ajuda a destacá-la, afastando o foco de um determinado problema (e, em vez disso, olhar para o ambiente que o cerca), pode conduzir a soluções melhores. Quando fazemos observações sobre filmes da Pixar e isolamos uma cena que não esta funcionando, hoje sabemos que sua alteração normalmente requer mudanças em outros lugares do filme que é para esse ponto que deve ir nossa atenção. Nossos produtores de filmes tornaram-se qualificados em nasceram apanhados dentro de um problema, mas sim em busca de soluções em outro ponto da história. Na Disney, da mesma forma, o conflito entre a produção e o grupo de supervisão poderia ter sido resolvido insistindo que todos se comportassem melhor quando, de fato, a verdadeira solução veio de se questionar a premissa sobre a qual foi formado o grupo de supervisão. Era a estrutura – os preconceitos que precediam o problema – que precisava ser enfrentada.”
Interessante que em apenas um trecho de um capítulo podemos ver um pouco como funciona uma gigante como a Pixar. Dá pra ver que os artistas têm liberdade, mas que ao mesmo tempo existe uma mentalidade de supervisão para ver se todos os detalhes estão funcionando. Todos esses pequenos detalhes é que vão compor uma obra de animação, neste caso.
Como foi abordado, desenhar é mais do que um ato físico. É um ‘aprender’ ou‘reaprender’ a ver, a observar o mundo que nos cerca. Essa é uma das belezas da arte. Ao observarmos o mundo, mesmo que de forma inconsciente, acabamos percebendo detalhes das pessoas, como emoções e também dos lugares; seja um luz quase que divina iluminando uma montanha ou mesmo a textura de uma pedra na beira de um lago. E isso de certa forma traz uma sensibilidade que muitas vezes toca lá no fundo de nosso ser.
Outro detalhe que vale trazer é o comentário onde ele cita cortes na verba pra educação artística nos Estados Unidos, por considerar arte algo como apenas “aprender a desenhar”. De certa forma, nossa realidade no Brasil tem algo parecido: a arte, no momento em que começamos a ser alfabetizados, fica totalmente em segundo plano como se fosse um mero passatempo. E isso tem efeito na nossa sociedade como um todo, onde as percepções artísticas de elementos como beleza, design, etc, são menosprezadas. E assim continuamos na nossa vida ‘prática’ e ‘objetiva’, onde qualquer tipo de reflexão do pensamento deve ser deixada de lado.
Devemos continuar passando esse tipo de conhecimento pra frente para pelo menos algumas pessoas reaprenderem a ver e questionarmos o mundo que nos rodeia. o/
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